quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Seção 80 na Vitrola / Depeche Mode - Black Celebration (1986) Parte 1

[Postagem originalmente publicada em 16/05/2011, de autoria de Edu Verme]



O ano era 1986, a data exata era 17 de março, um pouco mais de um mês antes de Chernobyl ir pelos ares. O synthpop agonizava, o metal imperava (só pra lembrar que nesse ano foram lançados "Master of Puppets", do Metallica, "Reign in Blood", do Slayer"Peace Sells", do Megadeth, entre muitos outros) e o post-punk oitentista expremia suas últimas gotas, servindo como inspiração para uma nova leva de bandas do chamado "rock gótico", agora bem mais eletrônicas e experimentais. Nesta fatídica data, quatro jovens, Alan WilderAndrew FletcherMartin Gore David Gahan, com seus esquisitíssimos cabelos e roupas, lançam um disco que sacudiria o mundo gótico e deixaria raízes durante todo o resto daquela década, influenciando bandas, e servindo de base para o estrondoso sucesso que o Depeche Mode alcançaria em meados de 90, com o lançamento de "Violator", que nada mais é do que um "Black Celebration" levado às últimas consequências.


Mas, vamos por partes. Vamos tentar entender o que se passava na cabeça desses quatro rapazes ingleses durante a confecção de um álbum tão estranho e diferente para a época, e para os próprios fãs do DM, até então acostumados com o minimalismo praticado pela banda.


1984 - Algum grande prêmio




O ano de 1984 foi intenso para o DM, com o estrondoso sucesso de "Some Great Reward", um álbum pesado e tão denso que foi até mesmo alvo de censura nos EUA. A banda finalmente havia se recuperado totalmente do baque criativo que acompanhou a saída do principal compositor da banda em 1981, Vince Clarke. "A partida de Clarke nos deu o pontapé na bunda que precisávamos para tomar nossas próprias decisões. Mas sem Vince nós nunca teríamos tido sucesso", comenta Gore. No começo do ano, um susto: Gahan estava dirigindo por Londres após sair de sua casa em Essex, quando seu carro sai da estrada e se choca contra outros 3 carros que estavam estacionados, ferindo a perna de um motorista. Um jornal local publica que Gahan havia atropelado o motorista, que supostamente teve sua perna amputada por causa do acidente. Através de um porta-voz da banda, anuncia-se que a notícia era falsa, e que Dave havia ficado muito chateado pela repercussão da história.

O problema com a imprensa, juntamente com o uso de ironia sobre religiões e um confronto inevitável com a igreja, se agrava com o lançamento de "Some Great Reward", álbum que trazia letras e temas fortes e polêmicos, como "Master and Servants", sumariamente banida da BBC, e "Blasphemous Rumours", sobre uma mãe que perde suas duas filhas recém-convertidas ao cristianismo e conclui que "Deus tem um péssimo senso de humor". Sobre ela, Andy Fletcher, que vinha da igreja e participava da Boy's Brigade (uma organização cristã), diz que a odiava, mas que percebeu gradualmente que era um comentário social válido. "'Blasphemous Rumours' não é realmente uma canção não-religiosa", diz Gahan na época. "É claro que é uma declaração pessoal de Martin, faz parte. Mas ao mesmo tempo é uma demonstração de como todo mundo deve se sentir em um momento ou em outro. Todos nós tivemos um pouco de educação religiosa, Andy particularmente, e eu fui à igreja regularmente durante um ano quando eu tinha 18, então há obviamente um pouco de rebelião contra isso. É exatamente isso, alguma das coisas que percebemos, como aquela lista que havia com o nome de pessoas para orações, e sempre tinha uma no topo que morria. Coisas como essas...". A música foi parcialmente baseada em uma menina que Martin conheceu certa vez, quando seu próprio interesse o motivou a ir à igreja com Fletch e Vince, aos 17 anos, "como um observador. Eu nunca fui cristão, mas eu queria entender o que motivava as pessoas a serem cristãs". Sobre os problemas com a imprensa, Gore comenta: "Eu tenho uma teoria de que se você não se expor demais, você dura mais tempo. Geralmente nós não temos muito a dizer, e na mesma medida as entrevistas vão começando a ficar muito entediantes. Eu não estou interessado em ser o centro das atenções". Dois anos depois, essa questão é tratada em outra entrevista: "Eu odeio entrevistas, na verdade, pois acho difícil soar natural. Eu odeio as ler, também. Essa é a razão pela qual não gosto de fazê-las. As últimas que fizemos tiveram em geral perguntas interessantes, mas quando eu lí o que saiu, eu pensei comigo mesmo: 'Eu tenho que ter mais cuidado na próxima', mas você nunca tem mais cuidado. Eu não culpo os jornalistas, eu culpo a mim mesmo".

Pode-se perceber que a banda estava passando por uma fase de pura rebeldia, colocando a cara à tapa sem se importar com considerações vindas de fora. Também não é nada que assuste, visto que na época eles estavam com seus vinte e poucos anos. Mas já podemos começar a entender a explosão de ousadia que começava a acontecer aqui e fecundada, resultaria no álbum "Black Celebration": "Eu gosto de fazer minhas letras soarem interessantes tocando em questões de tabus sociais. É muito fácil tocar músicas no rádio que não digam nada às pessoas. Então você apenas tem que se desviar ligeiramente para chocar as pessoas, coisa que gosto muito de fazer", diz Martin. Gahan segue a mesma linha de raciocínio: "Você tem que correr riscos... não se pode estar seguro o tempo todo, mesmo quando o tipo de pessoa que você possa ofender são aqueles tipos que adoram começar um barulho e fazer petições e este tipo de coisa. Eles são uma minoria".

Ainda em pé de guerra com a imprensa, a recepção do disco foi calorosa por parte dos fãs - os antigos, que cresciam junto com a banda, e os novos, cada vez mais numerosos -, e sombria por parte da crítica, que insistia que o disco "Some Great Reward" era um compêndio de não-amor. "Não. O álbum é sobre todos os tipos de coisa para além do amor... através da alimentação, religião, vida", diz Martin.



1985 - A preparação da celebração negra


O ano seguinte, 1985, é o ano da pausa do Depeche Mode. Tempo de rever (ou se aprofundar em) conceitos, polemizar, criar caso, guardar as velhas roupas no armário e comprar muito couro. A banda estava em todas as paradas, fazendo grande sucesso na Europa, e consegue estourar mais uma música, que a princípio deveria sair no próximo álbum de estúdio, "Black Celebration", chamada "Shake the disease", lançada em 29 de abril, mas que acabou incluída na coletânea "The Singles 81-85" para aproveitar o sucesso alcançado pela faixa (afinal, a gravação de "Black Celebration" ainda nem havia começado). Por essa época a banda começou a ser associada com a cultura gótica, ao mesmo tempo que o público gay também aumentava. "Eu gosto de vestir-me com roupas femininas", desabafa Martin. "Isso não faz de mim um travesti e nem quer dizer que estou 'por dentro do lance' vestindo-as, mas... er... roupas afeminadas me atraem. Eu gosto da combinação de casaco e calças com roupas de mulher. Isso desorienta as pessoas. O Depeche Mode não é pró-homossexualismo, mas desde o primeiro LP, com músicas como 'What's your name' e 'Boys say go', temos atraído uma pequena proporção de gays".


Em março, a "Some Great Reward Tour" retoma a estrada, passando pela América do Norte, Japão e Europa. Um vídeo é lançado, chamado "The World We Live In and Live in Hamburg", contendo uma apresentação em Hamburgo, na Alemanha, país muito querido por todos da banda. Foi lá que álbuns como "Construction Time Again" e "Some Great Rewardforam gravados, e onde futuramente "Black Celebration" também seria parido. "É a atmosfera", admite Gahan. "É um lugar pequeno onde você se sente à parte do mundo. Não há distrações, como em Londres. Eu não consigo mais trabalhar na Inglaterra. É engraçado. O estúdio está situado junto ao muro de Berlim, mas nenhum de nós jamais foi ao Oriente. Martin tentou uma vez, mas não o deixaram entrar devido á maneira como estava vestido. Eles pensaram que era um arruaceiro. As pessoas imaginam que trabalhamos aqui porque é uau, você sabe, um clima pesado, mas eu não sinto isso. O lugar é muito suburbano. Berlim é como Brixton".

Em novembro, ao término da tour e após um mês de descanso, os quatro se encaminham para Kreuzberg, um distrito de Berlim, para começarem as gravações do próximo álbum, no Hansa Studio, estúdio este que já havia sido palco de muita criatividade. Alguns álbuns gravados lá: "Heroes" do David Bowie, "The Idiot" e "Lust For Life" do Iggy Pop, "Force Majeure" do Tangerine Dream, "The firstborn is dead", do Nick Cave, entre vários outros. Por esta época a banda delineava claramente os caminhos que o álbum seguiria, com Martin falando sobre o tédio das excursões e um estilo de vida decadente que almejava seguir. "Sou uma pessoa bastante pessimista, que vê a vida como algo muito chato. Então tento ver essas coisas... amor, sexo, bebidas, como algo contra o tédio da vida. Quero representar o tédio da vida.".Apesar do clima sombrio de 1985, este ano também foi o ano em que Dave Gahan casou-se com Joanne Fox, na época presidente do fã-clube da banda, por quem foi apaixonado durante toda sua adolescência. Com Joanne, Gahan teve um filho, Jack. Eles se separaram em 1991, e Joanne pode ser vista no documentário "101", lançado em 1989. "Eu não sei porque nos casamos", diz Gahan em uma entrevista em 1986. "Foi apenas algo que nós dois estávamos a fim de fazer. Jo é a única pessoa com quem eu me sinto completamente á vontade, e quando você sente que pode fazer qualquer coisa na frente de alguém sem que soe artificial, então é com essa pessoa que você deve ficar."



1986 - O tédio da vida

"Eu amo preto...", diz Martin. "Eu amo a cor preta e eu amo roupas de couro em geral. Também adoro a idéia de ser amarrado, pois... eu amo a sensação de desamparo, e este deve ser o único motivo.". Desse modo 1986 começava para a banda.Em 10 de fevereiro, é lançado o primeiro single do álbum em gestação, "Stripped", que logo de cara chega à 15ª posição no Top 20 europeu. Carregada de uma aura "pop industrial", a banda apresenta um som ameaçador, altamente atmosférico e texturizado, diferente de tudo que o grupo vinha produzindo até então. As letras de Gore se mostram cada vez mais sombrias e pessimistas.

Stripped

A espinha dorsal de toda esta faixa foi baseada em torno do som de uma moto em marcha lenta gerado a partir de um Emulator - Preset 1 original, e um padrão de graves que foi alimentado por uma caixa Leslie. Sons adicionais, como a ignição do Porsche 911 de Dave e uma série de fogos de artifício (tirados da Guy Fawkers Night), foram gravadas pelo produtor Gareth Jones no estacionamento do estúdio com uma variedade incomum de microfones. Eles foram colocados em diferentes distâncias e alturas deixando que os fogos de artifício atingissem os angulos apropriados para criar um efeito estereofônico completo. Um kit de bateria alugado foi montado em uma área grande da Westside e usada para samplear os sons individualmente, tornando mais notáveis os tons neste ambiente especial (Fonte: http://www.recoil.co.uk/editorials/8698/bc/bc_07.html). O videoclip da faixa foi filmado e dirigido por Peter Care, no lado de fora do estúdio Hansa.
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Como "lado B" do single "Stripped", a música "But Not Tonight", que acabou sendo usada no filme "Modern Girls" de Jerry Kramer (que também dirigiu "Moonwalk", o filme do Michael Jackson) e saiu na edição americana de "Black Celebration", para desespero da banda, que considerava a música uma canção pop inútil que não se enquadraria no clima sombrio do disco. Um single de 12 polegadas saiu mais tarde, contendo mais lados B: "Breathing in fumes", uma nova música usando samples de "Stripped" e mixada pela banda e por Thomas Stiehler, e "Black Day", uma brincadeira acústica em cima da música "Black Celebration", cantada por Martin Gore e a única música que teve em seu crédito o nome do produtor Daniel Miller.

But Not Tonight

Apesar da banda ter composto essa música às pressas (em apenas um dia) e a detestar, ela fez um relativo sucesso, entrou para a trilha sonora de um filme e ganhou clip por parte dos Depeche Modes. Dirigido por Tamra Davis, o clip possui efeitos inovadores, onde um dos membros ficava de cabeça para baixo enquanto os outros permaneciam em pé. Uma curiosidade dessa música é que ela possui um rítmo e algumas notas iguais à "Angel", da Madonna, que havia saído um ano antes. Entre alguns que regravaram essa música estão Scott Weiland (do Stone Temple Pilots), Jimmy Somerville e Dntel.
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O lançamento de Black Celebration

E finalmente chegamos àquele fatídico dia, 17 de março de 1986, uma segunda feira. Enquanto Richard Clayderman fazia suas últimas apresentações de sua turnê brasileira, os quatro rapazes do Depeche Mode lançavam o disco que marcaria a história da banda e abriria as portas para a darkwave invadir as pistas de dança e os cemitérios do mundo inteiro. "Black Celebration" representa muitas coisas para o Depeche Mode. Sonoramente, nós podemos enxergar a evolução de sua sintetizada, sampleada, semi-industrial musica pop. Liricamente e temáticamente, o que temos é uma realização plena da desolação com a qual a banda vinha flertando em canções como "Blasphemous Rumours", "Love, in itself" e "Shake the disease". Apesar de tudo, o disco foi recebido friamente, não trouxe nenhum hit (apesar de hoje as faixas desse disco serem consideradas as favoritas de muitos fãs) e nem subiu as paradas de sucesso. Os que menos gostaram, pra variar, foram os jornalistas. Uma reportagem no NME, popular revista britânica de música, detonava o álbum: "'Black Celebration' encontra os Depeche ainda mais ansiosos do que estavam no deprimente "Some Great Reward" (...), gatinhos de pelúcia desesperados para parecerem como pervertidos, desesperados para escaparem da superficialidade do estrelato teen". Essa acidez tinha razão de existir: "New Dress", música que fechava o álbum, atacava a imprensa de forma escancarada.

New Dress

New Dress é uma das músicas mais dançantes do álbum, e ao mesmo tempo a que mais carregava uma aura de indignação. Após a briga com a imprensa, que começou no acidente de carro de Gahan, a banda sentia a necessidade de expressar seus reais sentimentos sobre a relação entre o que era publicado nos jornais e a realidade que não estavam naquelas palavras. Usando de ironia, Martin descreve o que seriam reportagens comuns em jornais, em um mundo onde morte e desespero também são comuns:

"Com ameaças sexuais um homem assassina sua esposa.
Uma vítima de explosão luta por sua vida.
Uma menina de treze anos é atacada com uma faca.
A Princesa Daiana está usando um vestido novo."

A ironia maior viria do fato que a Princesa Daiana morreria nas mãos dessa mesma imprensa que maltratava a banda anos antes. E, deixando tudo claro, definitivamente, Martin explica de que forma a falsidade da mídia poderia dominar o mundo, em um recado direto para todo e qualquer jornalista, mas talvez especificamente para o jornalista que acusou Gahan de ter decepado a perna do tal motorista:

"Você não pode mudar o mundo
Mas você pode mudar os fatos.
E quando você muda os fatos,
Você muda pontos de vista.
Se você muda pontos de vista,
Você pode mudar um voto,
E quando você muda um voto,
Você pode mudar o mundo."

NME revidava: "Mais triste ainda é 'New Dress', um ataque desenfreado à hipocrisia da imprensa, que na sua justaposição sem graça de títulos de reportagens ('horror, fome, milhões de pessoas morrem') contra seu refrão ('Princesa Diana está usando um vestido novo') recorda nada mais que um poema do ensino secundário".
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Na época do lançamento do álbum, a banda estava afundada na depressão. Talvez um pouco de teatro, afinal era necessário passar para os fãs a sensação de que o grupo era realmente aquilo que parecia ser no novo álbum. "Estamos péssimos", resmunga Gore, melancólicamente. "Se nós nunca somos felizes? Somos". Mas há de se admitir que o modo como soa o novo trabalho da banda é bastante deprimente, e Martin escreveu um monte de canções sobre como sua relação com garotas e coisas do gênero são o único consolo para a podridão geral do resto da vida e assim por diante. Mas será que a vida de pop star é realmente algo tão terrível? "Bem", ele diz, "é muito melhor do que a maioria dos empregos. Mas o que faço quando escrevo canções é muitas vezes recorrer à experiências passadas, como quando eu trabalhei por um ano e meio em um banco e tive que lidar com ordens permanentes - isto sim foi totalmente enfadonho". O resto da banda não parecia estar diferente da sombriedade de Gore. Alan, quando questionado sobre a felicidade na vida de um pop star, explica, dramaticamente: "Mesmo no nosso negócio - o mundo pop glamuroso -, você entra em uma rotina entediante. E você também começa a perceber pessoas estranhas rondando sua casa. Eu acho que a vida privada deveria ficar privada". Andy Fletcher com a palavra: "O novo álbum... ele não é uma espécie de pule-pule, como Madonna, não é? Nós ficamos realmente putos pelo fato de 'Stripped' não ter feito melhor. Foi chato... ela é um milhão de vezes melhor do que o nosso último single. Bom, de qualquer forma eu prefiro não ficar nas paradas o tempo todo". Dave Gahan: "'Black Celebration'... sim, é um título muito pesado. Não tem nada a ver com magia negra, como a maioria das pessoas parecem pensar. É mais sobre como a maioria das pessoas na vida não tem nada para comemorar. Elas vão trabalhar todos os dias e depois vão para um bar afogar suas mágoas. É disto que se trata - a comemoração do fim de mais um dia negro. Acho que é trágico você ter que compensar as tristezas ficando bêbado, mas também não vejo nada de anormal nisso. No fim das contas nós fazemos isso o tempo todo". Nada que se ensine na escola te prepara para as estranhas provas de ser um pop star: ser interrogado quando você está se sentindo mal-humorado, ser perseguido por fãs na rua, ser atingido por objetos estranhos jogados no palco... "Sim", rí Dave. "Na América jogam de tudo na gente - sutiã, suspensórios, calças e sapatos. Teve um show em que tinhamos cerca de 40 sapatos espalhados pelo palco, mas não havia pares! Imagine todas essas pessoas pulando até suas casas". Bom, enfim, parece que um pouco de humor ainda existia no coração da banda.




(Continua...)

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