quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Pérolas perdidas do cancioneiro nacional / Ave Sangria - Geórgia, a Carniceira


[Postagem originalmente publicada em 08/04/2011, de autoria de Edu Verme]

Ave Sangria - Geórgia, a Carniceira


O que você pensaria se vivesse nos anos 70, em plena Ditadura Militar, no auge do AI-15, e de repente, num festival, um monte de cabeludos piradaços tocando um som meio eletrificado, meio nordestino, meio poético, começassem a se beijar no palco, cobertos de maquiagem, e a cantar coisas como "Seu Valdir, o senhor machucou meu coração (...)/Eu trago dentro do peito um coração apaixonado batendo pelo senhor" ou "Quando eu botar fogo na roupa você vai se arrepender de tudo que me fez/(...)Quando eu gritar não se arrepie, lembre apenas das contrárias que me fez/(...)Essa é a peça de teatro mais bonita que eu já fiz."?

Certamente lembraria na hora da primeira música criada pelos Mutantes, na época ainda não Mutantes, "O Suicida": "o viaduto quebrou/ou alguém louco ficou".


Não é preciso dizer que o Ave Sangria, ex-Tamarineira Village, não durou muito. Pressionados pela censura por causa de "Seu Valdir" (que tinha sido criado para uma peça de teatro) quando a mesma estourou nas rádios, tiveram todos seus discos recolhidos e execução proibida nas rádios. Foi um baque terrível para eles, que vinham subindo em popularidade. Um tempo depois o disco foi relançado, sem "Seu Valdir", mas daí já era tarde demais. O barco havia zarpado e esquecido os mesmos em terra firme.


Hoje em dia o álbum de nascimento e funeral do Ave Sangria é considerado um marco do rock nordestino, que impressiona pelas ótimas composições e letras, pela visão crítica que parecia anos-luz de distância da época, e pelo charme da gravação precária, realizada em uma semana. "Não se podia errar, porque não dava tempo. Teve até uma música em que eu errei o baixo, mas ficou por isso mesmo.", conta Almir de Oliveira para a revista "Coquetel Molotov".


Mas o que mais impressiona neste álbum, ao menos pra mim, é um rockão pra lá de polêmico que, junto de "Sob o sol de Satã" (uma instrumental fantástica) finalizava o disco. A música se chama "Geórgia, a carniceira", e versa sobre uma divindade que anda sobre os escombros da Terra nos "pântanos frios das noites do Deus Satã", "jogando boliche com as cabeças das moças mortas de cio", enquanto seus olhos ("duas bolas de sangue rolando no espaço") encantavam a tudo e todos, que logo caiam em seus braços e morriam de amor.




O tema é pesado, e o refrão choca o ouvinte, até mesmo nos dias de hoje. Podemos dizer que a finalidade dessa música (assim como quase todos os atos do Ave) era realmente chocar, causar polêmica. Talvez inspirados pelos Stones e sua "Sympathy for the devil", talvez pelos grupos do círculo de Charles Manson, o fato é que o Ave trouxe pela primeira vez a imagem de Satã para os rockeiros brasileiros, de forma explícita e poética... e arrebatadora! Apesar da qualidade da gravação ser questionável, é inegável que a sonoridade se encaixa perfeitamente à letra. Uma guitarra enfuzziada e raivosa, uma bateria percussiva que incriminava a proveniência dos meliantes, um baixo marcando a base, e claro, o vocal cheio de sotaque de Marco Pólo, a principal característica da banda. 


"Geórgia, a carniceira" é uma música de impacto, como muita coisa produzida no Brasil dos anos 70, musicalmente falando. Era o cinema italiano musicado, misturado com as visões infernais de Zé do Caixão ("Aqui todos trazem longos pedaços de veludo pendendo dos ossos: é carne rasgada.") e do Nordeste. Era um conjunto botando a cara à tapa, buscando seu lugar ao sol.


Você poderia ter achado ridículo aquele monte de cabeludo meio abichornados cantando apaixonados rocks para o Seu Valdir, mas com certeza jamais teria imaginado que esses mesmos cabeludos deixariam marcado seus nomes na calçada da fama do rock nacional de forma tão marcante.

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